247 – Raimundo Rodrigues Pereira é um herói do jornalismo brasileiro,
que criou o jornal Movimento e enfrentou a ditadura militar. Agora, ele
abre uma nova frente de combate, desta vez com o Supremo Tribunal
Federal, ao demonstrar que o desvio de R$ 73,8 milhões do Banco do
Brasil, viga mestra da tese do mensalão, simplesmente não ocorreu. Leia
em primeira mão a reportagem de capa da revista Retrato do Brasil, que
vai às bancas em 1º de novembro e que, nesta semana, estará
disponibilizada no site da revista, amparada também em documentos:
A VERTIGEM DO SUPREMO
Os ministros do STF deliraram: não houve o desvio de 73,8
milhões de reais do Banco do Brasil, viga mestra da tese do mensalão.
Acompanhe a nossa demonstração
Por Raimundo Rodrigues Pereira, da revista Retrato do Brasil
A tese do mensalão como um dos maiores crimes de corrupção da história
do País foi consagrada no STF. Veja-se o que diz, por exemplo, o
presidente do tribunal, ministro Ayres Britto, ao condenar José Dirceu
como o chefe da “quadrilha dos mensaleiros”. O mensalão foi “um projeto
de poder”, “que vai muito além de um quadriênio quadruplicado”. Foi
“continuísmo governamental”, “golpe, portanto”. Em outro voto, que
postou no site do tribunal dias antes, Britto disse que o mensalão
envolveu “crimes em quantidades enlouquecidas”, “volumosas somas de
recursos financeiros e interesses conversíveis em pecúnia”, pessoas
jurídicas tais como “a União Federal pela sua Câmara dos Deputados,
Banco do Brasil-Visanet, Banco Central da República”.
Britto, data vênia, é um poeta. Na sua caracterização do mensalão como
um crime gigante, um golpe na República, o que ele chama de Banco do
Brasil-Visanet, por exemplo? É uma nova entidade financeira? Banco do
Brasil a gente sabe o que é: é aquele banco estatal que os liberais
queriam transformar em Banco Brasil, assim como quiseram transformar a
Petrobras em Petrobrax, porque achavam ser necessário, pelo menos por
palavras, nos integrarmos ao mundo financeiro globalizado.
De fato, Visanet é o nome fantasia da Companhia Brasileira de Meios de
Pagamento, responsável, no Brasil, pelos cartões emitidos com a chamada
bandeira Visa (hoje o nome fantasia mudou, é Cielo). Banco do
Brasil-Visanet não existia, nem existe; é uma entidade criada pelo
ministro Britto. E por que, como disse no voto citado, ele a colocou
junto com os mais altos poderes do País - a União Federal, a Câmara dos
Deputados e o Banco Central da República? Com certeza porque, como a
maioria do STF, num surto anti-corrupção tão ruim quanto os piores
presenciados na história política do País, viu, num suposto escândalo
Banco do Brasil-Visanet, uma espécie de revelação divina. Ele seria a
chave para transformar num delito de proporções inéditas o esquema de
distribuição, a políticos associados e colaboradores do PT, de cerca de
50 milhões de reais tomados de empréstimo, de dois bancos mineiros, pelo
partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No dia 13 de julho de 2005, menos de um mês depois de o escândalo do
mensalão ter surgido, com as denúncias do deputado Roberto Jefferson, a
Polícia Federal descobriu, no arquivo central do Banco Rural, em Belo
Horizonte, todos os recibos da dinheirama distribuída. Delúbio Soares,
tesoureiro do PT, e Marcos Valério, um empresário de publicidade
mineiro, principais operadores da distribuição, contaram sua história
logo depois. E não só eles como mais algumas dezenas de pessoas, também
envolvidas no escândalo de alguma forma, foram chamadas a depor em
dezenas de inquéritos policiais e nas três comissões parlamentares de
inquérito que o Congresso organizou para deslindar a trama.
Todos disseram que se tratava do famoso caixa-dois, dinheiro para o
pagamento de campanhas eleitorais, passadas e futuras. Como dizemos,
desde 2005, tratava-se de uma tese razoável. Por que razoável, apenas?
Porque as teses, mesmo as melhores, nunca conseguem juntar todos os
fatos, sempre deixam alguns de lado. A do caixa-dois é razoável. O
próprio STF absolveu o publicitário Duda Mendonça, sua sócia Zilmar
Fernandes e vários petistas, que receberam a maior parte do dinheiro do
chamado valerioduto, porque, a despeito de proclamar que esse escândalo é
o maior de todos, a corte reconheceu tratar-se, no caso das pessoas
citadas, de dinheiro para campanhas eleitorais. E a tese do caixa-dois é
apenas razoável, como dissemos também, porque fatos ficam de fora.
É sabido, por exemplo, que, dos 4 milhões recebidos pelo denunciante
Roberto Jefferson - que jura ser o dinheiro dele caixa dois e o dos
outros, mensalão - uma parte, modesta é verdade, foi para uma jovem
amiga de um velho dirigente político ligado ao próprio Jefferson e
falecido pouco antes. Qualquer criança relativamente esperta suporia
também que os banqueiros não emprestaram dinheiro ao PT porque são
altruístas e teria de se perguntar porque o partido repassou dinheiro ao
PTB, PL e PP, aliados novos, e não ao PSB, PCdoB, aliados mais fiéis e
antigos. Um arguto repórter da Folha de S. Paulo, num debate recente
sobre o escândalo, com a participação de Retrato do Brasil, disse que
dinheiro de caixa-dois é assim mesmo. E que viu deputado acusado de ter
recebido o dinheiro do valerioduto vestido de modo mais sofisticado
depois desses deploráveis acontecimentos.
O problema não é com a tese do caixa-dois, no entanto. Essa é a tese dos
réus. No direito penal brasileiro, o réu pode até ficar completamente
mudo, não precisa provar nada. É ao ministério público, encarregado da
tese do mensalão, que cabe o ônus da prova. E essa tese é um horror. No
fundo, é uma história para criminalizar o Partido dos Trabalhadores,
para bem além dos crimes eleitorais que ele de fato cometeu no episódio.
O escândalo Banco do Brasil-Visanet, que é o pilar de sustentação da
tese, não tem o menor apoio nos fatos.
Essencialmente, a tese do mensalão é a de que o petista Henrique
Pizzolato teria desviado de um “Fundo de Incentivo Visanet” 73,8 milhões
de reais que pertenceriam ao Banco do Brasil. Seria esse o verdadeiro
dinheiro do esquema armado por Delúbio e Valério sob a direção de José
Dirceu. Os empréstimos dos bancos mineiros não existiriam. Seriam
falsos. Teriam sido inventados pelos banqueiros, também articulados com
Valério e José Dirceu, para acobertar o desvio do dinheiro público.
Essa história já existia desde a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
(CPMI) dos Correios. Foi encampada pelos dois procuradores-gerais da
República, Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, que fizeram os
trabalhos da acusação. E foi transformada num sucesso de público graças
aos talentos do ministro Joaquim Barbosa na armação de uma historinha ao
gosto de setores de uma opinião pública sedenta de punir políticos, que
em geral considerada corruptos, e ao surto anticorrupção espalhado por
nossa grande mídia, que infectou e levou ao delírio a maioria do STF.
Por que a tese do mensalão é falsa? Porque o desvio dos 73,8 milhões de
reais não existe. A acusação disse e o STF acreditou que uma empresa de
publicidade de Valério, a DNA, recebeu esse dinheiro do Banco do Brasil
(BB) para realizar trabalhos de promoção da venda de cartões de bandeira
Visa do banco, ao longo dos anos 2003 e 2004. E haveria provas cabais
de que esses trabalhos não foram realizados.
A acusação diz isso, há mais de seis anos, porque ela precisa de que
esse desvio exista. Porque seria ele a prova de serem os 50 milhões de
reais do caixa dois confessado por Delúbio e Valério inexistentes e de
os empréstimos dos bancos mineiros ao esquema Valério-Delúbio serem
falsos e decorrentes de uma articulação política inconfessável de Dirceu
com os banqueiros. Ocorre, no entanto, que a verdade é oposto do que a
acusação diz e o STF engoliu. Os autos da Ação Penal 470 contêm um mar
de evidências de que a DNA de Valério realizou os trabalhos pelos quais
recebeu os 73,8 milhões de reais.
No nosso site na internet, RB está apresentando, a todos os interessados
em formar uma opinião mais esclarecida sobre o julgamento que está
sendo concluído no STF, um endereço onde pode ser localizada a mais
completa auditoria sobre o suposto escândalo BB-Visanet. Nesse local o
leitor vai encontrar os 108 apensos da AP 470 com os trabalhos dessa
auditoria. São documentos em formato pdf equivalentes a mais de 20.000
páginas e foram coletados por uma equipe de 20 auditores do BB num
trabalho de quatro meses, de 25 de julho a 7 de dezembro de 2005 e
depois estendido com interrogatórios de pessoas envolvidas e de
documentos coletados ao longo de 2006.
A auditoria foi buscar provas de que o escândalo existia. Mas, ao
analisar o caso, não o fez da forma interesseira e escandalosa da
procuradoria geral da República e do relator da AP 470 Joaquim Barbosa,
empenhados em criminalizar a ação do PT. Fez um levantamento amplo do
que foram as ações do Fundo de Incentivo Visanet (FIV) desde sua criação
em 2001.
Um resumo da auditoria, de 32 páginas, está nas primeiras páginas do
terceiro apenso (Vol. 320). Resumindo-a mais ainda se pode dizer que:
* As regras para uso do fundo pelo BB têm duas fases: uma, de sua
criação em 2001 até meados de 2004, quando o banco adotou como
referencial básico para uso dos recursos o Regulamento de Constituição e
Uso do FIV da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP); e
outra, do segundo semestre de 2004 até dezembro de 2005, quando o BB
criou uma norma própria para o controle do fundo.
*Entre 2001 e 2004, a CBMP pagou, por ações do FIV programadas pelo BB,
aproximadamente 150 milhões de reais – 60 milhões nos anos 2001-2002, no
governo Fernando Henrique Cardoso, portanto; e 90 milhões nos anos
2003-2004, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. E, nos dois
períodos, sempre 80% dos recursos foram antecipados pela CBMP, a pedido
do BB, para as agências de publicidade contratadas pelo banco.
*O BB decidiu, em 2001, por motivos fiscais, que os recursos do FIV não
deveriam passar pelo banco. A CBMP pagaria diretamente os serviços
através de agências contratadas pelo BB. A DNA e a Lowe Lintas foram as
agências, no período 2001-2002. No final de 2002 o BB decidiu
especializar suas agências e só a DNA ficou encarregada das promoções do
FIV. Os originais dos documentos comprobatórios das ações ficavam na
CBMP, não no BB, em todos os dois períodos.
*O fato de o BB encomendar as ações mas não ser o controlador oficial
das mesmas fez com que, nos dois períodos, 2001-2002 e 2003-2004, fossem
identificadas, diz a auditoria, “fragilidades no processo e falhas na
condução de ações e eventos”, que motivaram mudanças nos controles de
uso do fundo. Essas mudanças foram implementadas no segundo semestre de
2004, a partir de 1 de setembro.
*O relatório destaca algumas dessas “fragilidades” e “falhas”. Aqui
destacaremos a do controle dos serviços, para saber se as ações de
promoção tinham sido feitas de fato. Os auditores procuraram saber se
existiam os comprovantes de que as ações de incentivo autorizadas pelo
BB no período tinham sido de fato realizadas. **Procuraram os documentos
existentes no próprio banco – notas fiscais, faturas, recibos emitidos
pelas agências para pagar os serviços e despesas de fornecedores para
produzir as ações. Descobriram que, para os dois períodos 2001-2002 e
2003-2004 igualmente, somando-se as ações com falta absoluta de
documentos às com falta parcial, tinha-se quase metade dos recursos
despendidos.
**Os auditores procuraram então os mesmos documentos na CBMP, que é, por
estatuto, a dona dos recursos e a controladora de sua aplicação e dos
documentos originais de comprovação da realização dos serviços. A falta
de documentação comprobatória foi, então, muito pequena - em proporção
aos valores dos gastos autorizados, de 0,2% em 2001, 0,1% em 2002, 0,4%
em 2003 e 1% em 2004.
*Dizem ainda os auditores: com as novas normas, em função das mudanças
feitas nas formas de controlar o uso do dinheiro do FIV pelo BB, entre
janeiro e agosto de 2005 foram executadas sete ações de incentivo, no
valor de 10,9 milhões de reais e se pode constatar que, embora ainda
precisassem de aprimoramento, as novas regras fixadas pelo banco estavam
sendo cumpridas e os “mecanismos de controle” tinham sido aprimorados.
Ou seja: o uso dos recursos do FIV pelo BB foi feito, sob a gestão do
petista Henrique Pizzolato, exatamente como tinha sido feito no governo
FHC, nos dois anos anteriores à chegada de Pizzolato ao banco. E mais:
foi sob a gestão de Pizzolato, em meados de 2004, que as regras para uso
e controle dos recursos foram aprimoradas.
Mais reveladora ainda é análise dos apensos em busca das evidências de
que os trabalhos de promoção dos cartões Visa vendidos pelo BB foram
feitos. E essas evidências são torrenciais. Uma amostra dessas promoções
que devem ser do conhecimento de milhares e milhares de brasileiros
estão no quadro abaixo.
Em toda a documentação da auditoria existem questionamentos, são
apresentados problemas. Mas de detalhes. Não é disso que se tratou no
julgamento da AP 470 no entanto. A acusação que se fez e que se pretende
impor através do surto do STF é outra coisa. Quer apresentar os 73,8
milhões gastos através da DNA de Valério como uma farsa montada pelo PT
com o objetivo de ficar no poder, como diz o ministro Britto, “muito
além de um quadriênio quadruplicado”. Essa conclusão é um delírio. As
campanhas de promoção não só existiram como deram resultados
espetaculares para o BB tendo em vista os objetivos pretendidos. O banco
tornou-se o líder nos gastos com cartões Visa no Brasil.
Em 2003, o banco emitiu 5,3 milhões desses cartões, teve um crescimento
de cerca de 35% no seu movimento de dinheiro através deles, tornou-se o
número um nesse quesito entre os associados da CBMP. No final do ano, 18
de dezembro, às 14h30 horas, em São Paulo, no Itaim Bibi, rua
Brigadeiro Faria Lima 3729, segundo andar, sala Platinum, de acordo com
ata do encontro, os representantes dos sócios no Conselho de
Administração da CBMP se reuniram e aprovaram o plano para o ano
seguinte. Faturamento esperado nas transações com os cartões Visa para
2004, 156 bilhões de reais. Dinheiro do FIV, ou seja: recursos para as
promoções dos cartões pelos vários bancos associados, 0,10%, ou seja 1
milésimo, desse total: 156 milhões. Parte a ser usada pelo BB, que era,
dos 25 sócios da CBMP, o mais empenhado nas promoções: 35 milhões de
reais.
Pode-se criticar esse esquema Visanet-BB. O governo está querendo que as
taxas cobradas dos estabelecimentos comerciais pelos uso dos cartões
sejam reduzidas. Na conta feita no parágrafo anterior, dos 156 bilhões
de reais a serem movimentados pelos cartões em 2004, o dinheiro que iria
para o esquema Visanet-BB seria de 4% a 6% desse total, ou seja,
ficaria entre 6 a 10 bilhões de reais (ou seja, a verba programada para o
fundo de incentivos na promoção dos cartões foi pelo menos 40 vezes
menor). A procuradoria da República e o ministro Barbosa sabem de tudo
isso. Se não o sabem é porque não quiseram saber: da documentação
tiraram apenas detalhes, para criar o escândalo no qual estavam
interessados.