O Congresso deve votar em fevereiro um polêmico
projeto de lei que aumenta a pena mínima para quem for pego com drogas,
além de estabelecer internação compulsória para desintoxicação e o
credenciamento de comunidades terapêuticas junto ao Ministério da
Saúde. Críticos enxergam nas mudanças o risco de punir
desproporcionalmente usuários e pequenos traficantes que vendem para
sustentar o próprio vício, mas o autor da proposta, deputado Osmar
Terra (PMDB-RS), argumenta que endurecer a lei é o que a “sociedade
brasileira, que vive o drama das drogas, deseja”.
O projeto, que tem grandes chances de ser aprovado em regime de
urgência no plenário, já passou, por unanimidade, pela Comissão
Especial do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas.
— Acho que vai ser um dos projetos mais fáceis de votar, e calculo
que teremos 80% dos votos a favor — conta Terra. — Aumentar a pena é
trabalhar tendo raciocínio de Saúde Pública. Quanto mais gente na rua
vendendo, quanto mais oferta, mais dependentes químicos vamos ter. Na
proposta original, a ideia também é classificar as drogas e ter penas
mais altas, por exemplo, para quem é pego traficando crack, criando uma
espécie de tabela de acordo com o dano que a droga causa.
Traficante e usuário: Fundadora do Instituto
Igarapé, da Rede Pense Livre e membro da Comissão Global de Políticas
sobre Drogas, que reúne sete ex-presidentes e o ex-secretário-geral da
ONU Kofi Annan, Ilona Szabó critica o projeto:
— A última mudança na lei, em 2006, criou a pena mínima, que o STF
já decidiu que não deve ser aplicada e que é preciso olhar caso a caso.
No entanto, agora a ideia é aumentá-la. Em 2006, a lei não determinou
quem é usuário e quem é traficante. Não temos critério e esse PL não
cria um. Se a pessoa é pega com droga, e a polícia falar que trafica,
ela não pode responder em liberdade. Tem fiança para homicídio, mas não
tem para tráfico — diz Ilona, que concorda que a lei precisa mudar: —
No entanto, com esse projeto o poder público isola o Brasil do debate
internacional. É uma política conservadora e na retórica do medo. Fora
que já vimos nos EUA que ter penas de acordo com o potencial da droga só
prende mais pobres e negros.
— Se tiver uma quantidade estabelecida [para definir quem é
traficante], quem anda com droga, é óbvio, vai ter sempre essa
quantidade e depois vai em casa pegar outra carga para vender. É
ingenuidade achar que não será assim. Quem tem que avaliar se é
traficante ou usuário é o policial e o juiz, que podem olhar os
antecedentes. Hoje, de cada dez só quatro são considerados traficantes —
diz Terra.
Ex-secretário nacional de Justiça, o advogado Pedro Abramovay afirma
que a lei de 2006, ao criar a pena mínima, já endureceu a política de
drogas — “tínhamos 62 mil presos por tráfico nesse época e agora são
134 mil”— e que a proposta de passar de cinco para oito anos o tempo
mínimo de prisão “não vai alterar em nada o tráfico nem vai diminuir o
consumo de drogas”:
— O perigo dessa proposta é que legisla com o senso comum e não com a
ciência, e quer aperfeiçoar o que já vem dando errado. Não tem estudo
que mostre que prender o usuário que vende para arcar com o vício, que é
o pequeno traficante, reduza o consumo. O traficante que tem relação
com o crime, esse deve ser enfrentado, mas não estamos falando só
desses.
A pesquisa “Tráfico e Constituição: um estudo sobre a atuação da
Justiça Criminal do Rio e do Distrito Federal no crime de tráfico de
drogas”, do Núcleo de Política de Drogas e Direitos Humanos da UFRJ,
aponta que no universo de condenados por tráfico no Rio, entre outubro
de 2006 a maio de 2008, 66% eram réus primários, 14% portavam armas no
momento da prisão e 42% foram flagrados e presos tendo menos de 100
gramas de maconha.
— Réus primários estão sendo presos e não têm como responder em
liberdade. No Brasil, é melhor dizer que matou do que vendeu maconha.
As pessoas vão ter dificuldade para arrumar emprego e ainda terão tido
contato e até a chance de criar vínculos com organizações criminosas.
Isso sem falar nas condições dos presídios brasileiros — argumenta
Abramovay.
O deputado Osmar Terra contesta:
— O que me preocupa é a Saúde Pública. O resto é desculpa. Por que o
coitadinho que roubou está preso e quem vende droga não pode ir para a
prisão? Ter presídio em boas condições é responsabilidade do governo.
Como não temos vamos parar de prender? Um erro não justifica outro. Se
por conta disso a gente parar de prender traficantes, temos que deixar
os criminosos todos soltos.
— Hoje, a política que temos, essa de deixar o policial decidir,
permite que haja, por exemplo, suborno. Quem é pego com baixa
quantidade sabe que será fichado, que terá ficha criminal. Daí, tenta
subornar o policial ou recebe uma proposta para pagar e deixar isso
esquecido. Tirar o consumo da esfera criminal cortaria os ciclos de
violência e corrupção — explica Ilona.
Comunidades terapêuticas: Além de aumentar a pena mínima, o PL propõe que a internação do dependente de drogas se dê de forma involuntária.
— A família pode pedir que o médico interne o dependente. A proposta
é que as pessoas fiquem internadas num hospital de 15 a 45 dias e
nesse período passem pela crise de abstinência — explica o deputado
Terra: — O SUS e a rede particular vão ter que criar mais leitos. A
droga faz a pessoa adoecer, ela pode desenvolver esquizofrenia,
depressão, ficar bipolar. O segredo para largar é a abstinência,
internada ela pode voltar a ter capacidade de decidir se quer se
tratar.
Segundo Terra, o Brasil pode ainda ampliar o uso das comunidades terapêuticas, onde o tratamento teria prosseguimento:
— Temos 60 mil vagas, que foram criadas em cima da omissão do
Estado. Se elas seguirem um protocolo estabelecido pelo SUS, tendo
médicos, por que não repassar dinheiro e usá-las? Em 2009, no Rio
Grande do Sul, abri 700 vagas credenciando comunidades. Num lugar
assim, um dependente poderia passar entre nove meses e um ano, estaria
longe de casa, dos lugares que frequentava.
Abramovay e Ilona defendem que a internação só aconteça por ordens médicas.
— Temos que ser capazes de oferecer tratamento que evite tirar a
pessoa da realidade e que reduza danos. O PL devia trabalhar para
fortalecer mecanismos que já temos, como consultórios de rua, médicos
da família, agentes de saúde e centros de atenção para álcool e drogas.
No entanto, propõe a internação e o fortalecimento das comunidades
terapêuticas, que geralmente têm cunho religioso. Não estamos abrindo
guerra contra as comunidades, em São Bernardo do Campo há uma
bem-sucedida, mas isso não pode ser a única opção — conta Ilona.
O projeto de Osmar Terra não é o único a movimentar o Congresso.
Elaborado por uma comissão especial de juristas, um anteprojeto do
Código Penal, que está em análise no Senado, traz, entre outras
propostas, a descriminalização do plantio e do porte de maconha para
consumo próprio. Ainda no Senado, um projeto do ex-senador Demóstenes
Torres também propõe internação compulsória.
— A questão da descriminalização da droga é dilema de meia dúzia de
intelectuais, não é o que deseja a sociedade brasileira, que vive esse
drama, que sabe como é difícil ter qualquer tratamento. Se isso passar,
vamos criar uma legião de esquizofrênicos, de doentes, uma legião de
lesados — diz Terra.
— Defendemos uma legislação que descriminalize a droga, mas também
um diálogo sem medo, como aconteceu quando o Brasil pôde criar uma
política para a Aids, assunto que era também polêmico. Por que não
olhar para a questão das drogas assim, de uma maneira não conservadora?
— pergunta Ilona.
Fonte: oglobo.com