A
renúncia inesperada do Papa Bento XVI, em pleno Carnaval, assume, cada
vez mais, as características de uma retirada estratégica. Ao ver o barco
da Igreja Católica Romana quase à deriva, principalmente nos campos da
ética pública e da ética privada, Joseph Ratzinger preferiu optar por
viver semi-isolado a sua condição de octogenário.
Não é de agora a intenção de Ratzinger, afirmam fontes vaticanas. Um
dos seus maiores amigos, o ex-arcebispo de São Paulo, cardeal Cláudio
Hummes, preparou, a pedido do Papa, há cinco anos, um relatório secreto
sobre a situação geral da Igreja e suas perspectivas. O documento foi
lido na abertura do Sínodo Mundial dos Bispos, no Vaticano e continua
mantido sob rigoroso sigilo.
Com base em ampla documentação, o relatório Hummes aponta graves desafios para a atuação do Catolicismo. O principal deles é o avanço do indiferentismo religioso; o segundo é a migração, diante de expectativas não respondidas pela Igreja, de legiões cada vez mais numerosas de católicos para outras confissões cristãs, de matriz pentecostal, em sua maioria, e para outras religiões, como é o caso do Islamismo; o terceiro desafio refere-se à atuação pouco eficaz dos bispos que integram a cúpula eclesiástica para coibir a prática da pedofilia por parte de clérigos; o quarto diz respeito à situação do clero quanto às questões do celibato obrigatório, da impossibilidade da admissão de mulheres ao sacerdócio e das restrições que o Vaticano faz ao controle da natalidade.
No seu relatório, Hummes chama a atenção da cúpula eclesiástica para o
avanço de uma espécie de “sentimento de vazio” na sociedade global,
caracterizado por uma nouvelle vague decorrente da hegemonia capitalista
e da crise das utopias, no pós-queda do Muro de Berlim.
Detalhando um pouco mais esse panorama, os argumentos do cardeal
Hummes são reforçados por dados da realidade: na França, o Islamismo já
se tornou a religião hegemônica; enquanto velhos templos católicos se
deterioram ou são alugados para famílias sem casa de baixa renda (ou são
transformados em museus). A República laicista francesa é obrigada a
lidar não mais com a disputa de poder com os bispos, mas com questões
que (se tivessem acontecido naquela época) deixariam perplexo o rei
Luís, como é o caso do uso de burkas pelas mulheres islâmicas, da
permissão para a construção de mesquitas e na adoção das normas do
Alcorão sobre a família, entre outras.
A preocupação do papa Ratzinger quanto ao pentecostalismo refere-se
ao crescimento de um novo modelo de Igreja que adota a chamada “teologia
da prosperidade” como referencial teológico e pastoral. Esse modelo
baseia-se em um “toma lá dá cá” entre os seus adeptos e Deus, tendo como
objetivo o enriquecimento pessoal dos crentes e a cura das doenças,
numa perspectiva que desconhece os fatores sócio-econômicos entre as
causas da persistência e do avanço dos males sociais (como o desemprego,
a violência, as drogas entre outros).
Trunfo jogado fora
A renúncia do Papa coloca em xeque a principal vitória das correntes conservadoras do Catolicismo nos séculos XX e XXI: o enquadramento da Teologia da Libertação quando Ratzinger entrou no consistório para disputar a eleição pontifícia, já contava com pelo menos 50 votos de cardeais contrários à Teologia da Libertação. Essa leitura teológica ainda representa a primeira interpretação não européia da Teologia tradicional com base na realidade dos oprimidos do Terceiro Mundo. Foi trazida, paradoxalmente, da Europa pelo peruano Gustavo Gutierrez e por toda uma legião de bispos e teólogos, com base na Teologia Crítica alemã e nos documentos do Concílio Vaticano II.
Um dos adeptos mais destacados dessa corrente foi o colombiano padre
Camilo Torres, que ingressou na guerrilha do ELN (Exército de Libertação
Nacional), depois de voltar a seu país, como sociólogo, com doutorado
na Universidade de Louvain, na Bélgica. Durante pelo menos 30 anos a
Teologia da Libertação alimentou a esperança de milhões de cristãos, que
vislumbravam, após mais de 500 anos de colonialismo e de esmagamento
dos pobres.
Eleito Papa, Bento XVI tratou de concretizar em nível global a
ofensiva conservadora. Seu laboratório anterior havia sido a Congregação
para a Doutrina da Fé (antiga Santa Inquisição) onde havia comandado os
processos de expurgo de teólogos como Leonardo Boff e Jon Sobrino. De
um momento para outro, a Igreja deixou de ser uma das principais
referências para a produção de sentido na sociedade. Entrou em
descompasso, mesmo que fosse para polemizar, com a pós-modernidade.
Retomou antigos costumes que lhe foram úteis na época da Cristandade,
mas que se revelaram incompatíveis com a dinâmica de um mundo em rápida
mutação de valores e em plena revolução tecnológica. A linha política
adotada pelo Papa afastou da cúpula da Igreja os seus quadros
progressistas e a distanciou das massas empobrecidas no mundo.
Corrupção
Por outra parte, Bento XVI tentou impedir, mas não conseguiu, a crescente corrupção nas instituições financeiras do Vaticano. O próprio Instituto de Obras da Religião (como é chamado o Banco Central da Santa Sé) foi apontado publicamente como um paraíso da lavagem de dinheiro oriundo de fontes desconhecidas ou escusas. O papa teve que intervir várias vezes nos órgãos financeiros do Vaticano diante de denúncias de corrupção apresentadas pelos jornais e pelas autoridades italianas.
Paralelamente, Bento XVI teve que pagar a conta política dos prejuízos
causados à Igreja por causa de indenizações determinadas pela justiça
nos casos de pedofilia envolvendo clérigos. A Arquidiocese de Boston,
nos EUA, é recordista nesse tipo de despesa.
E o futuro?
O Vaticano e o Papa dispõem de todas as informações sobre a crise que levou Bento XVI à renuncia. A eleição do novo Papa, em março próximo, revelará se a Igreja está mesmo disposta a enfrentar a sua maior crise em dois séculos (XX e XXI) ou se continuará voltada para o seu próprio umbigo.
Por Jean Ganso, Com Focando a Noticia